Escrever para os inimigos
300920221651
criado em: 16:50 2022-09-30
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- palavras-chave: #disserte #1000palavrasoumais #insight #elit
- notas permanentes: quisquilae
- Piglia, Ricardo
Escrever para os inimigos, não para o social, procurar a ocultação. Indagar sobre a sobrevivência do escritor argentino. A exterioridade desta promoción (e não desta geração). Promoção: que se promove, grupos que surgem numa mesma data.
Anos de Formação: Os Diários de Emilio Renzi (Ricardo Piglia)
Abril acabou. Com ele, 25% do ano, o ano zero da pandemia. Para quem aguentou até aqui, parabéns, está apenas começando (sempre está começando até que um dia acaba, como diz aquele provérbio japonês, “em uma viagem mil léguas, 900 é ainda a metade”).
Cotidiano, hábito e rotina, são palavras que significavam algo totalmente diferente até então. Eu não faço ideia do que eram. Agora significa apenas um plantinha nascendo na rachadura do asfalto e nada mais.
O tempo é tão escorregadio que parece ilusório. Escorre pelas mãos. Fico furioso, fico frustrado. Na delicada construção dos dias a dois, vou ao banheiro gritar mudo para não me tornar um fardo mais pesado do que já sou. Não funciona.
Bem que dizem que é para aguentar junto, “na saúde e na doença”. Já são boas semanas que levamos um ao outro adiante, com ninguém mais entre nós. No entanto isso também vai passar. Eu envelheci. Mesmo sem o sol, sem o exercício e sem o trabalho, eu envelheci. Acho que era para ser assim mesmo. Sou o irmão mais velho, o que veio primeiro e isso é tudo que sempre serei.
A pergunta que não quer calar no entanto é: que mundo nascerá desta terra desolada? Que mundo eu quero que nasça? O que eu vou dizer aqui não passam de conjecturas — como sempre foi — mas são pensamentos muito importantes. Inevitáveis.
A pandemia é apenas um dos nossos vários problemas. Talvez o mais urgente, mas não necessariamente o maior. Ou o mais perigoso. O que quero dizer é que precisamos rever uma enormidade de conceitos e ideias. Precisamos discutir à exaustão e precisamos fazer isso já. Se há algum platô tecnológico que permita isso, nós já chegamos.
Falo não por mim, mas pelas testemunhas do amanhã. As crianças que hoje acham que estão de férias e que um dia vão estudar sobre isso ou talvez não. Não falo por mim, quem sou eu. Eu mal consigo me manter em um grupo de whatsapp casual sem surtar; só acho que precisamos urgentemente construir pontes, mas que se não for uma vontade de todos os envolvidos sempre haverá o abismo para nos puxar. Difícil travessia, claro, mas não precisamos fazer sozinhos.
Existem bons líderes e mal líderes. Bons governos e mal governos. E se isso é simplista a princípio, há uma razão para isso. As pessoas não precisam de governo. E se ainda assim houver governo, que seja um governo que não governe, porque, mais uma vez, as pessoas não precisam de governo.
E, de certo modo isso já acontece, mas não assimilamos à nossa linguagem. Sim, porque a linguagem é a fonte da maioria de nossos problemas e desta vez não é diferente. Entre sentir e entender sempre haverá um abismo intransponível (salto no escuro, salto da fé).
Hoje estive jogando “Life is Strange”, e tive a impressão de que eu voltava à faculdade. Sim, pois a minha rotina de estudos, como a de todo mundo, foi arrebatada e agora, em casa, tenho que me debater com as escolhas entre o que ler, o que aprender e o que esquecer. Entrar na rotina de Max Caulfield (mesmo sobrenome que o protagonista em Apanhador no Campo de Centeio), uma jovem estudante de fotografia me lembra que por trás desta pele e carranca ainda existe um anseio por sensibilidade.
Mas eu penso demais. Anseio, planejo e verifico demais. Não à ponto da insônia, mas quase. Não dá mais para fazer planos; é preciso aceitar e reconhecer o estado em que chegamos. Não podemos sair de casa, mas se precisar saímos. Não precisamos do presidente, mas sem ele quem nós iríamos chamar de incompetente? O neoliberalismo é a maior máquina de moer gente que a humanidade já inventou mas e se precisarmos dela depois que isso tudo passar? Você não precisa se matar para construir pontes se entender que pode dar novas utilidades às que já existem.
“subversivode84” era o nome de um e-mail, o primeiro que já tive talvez. Isso era de uma época em que ser desobediente e rebelde era algo que trazia orgulho. Eu o escolhi porque soube que esse era, junto de “comunista”, a pecha que era dada aos estudantes e resistentes nos fins dos anos 60. Veja bem, os anos 60 não acabaram: temos um representante legítimo dele no poder.
Obediência é uma virtude na cabala, toda uma sephirot para isso; com tantos quilômetros rodados finalmente posso dizer que entendi que nunca foi uma questão de questionar a autoridade, mas de permanecer fiel à minha verdade. Ler A Desobediência Civil de Thoreau e assistir Capitão Fantástico, entre outras coisas, é entender que entre o dizer e o fazer existe um mundo de diferença e que coerência é mais relacionada a um estado de arte mais do que a algum alinhamento político.
Disso se decorre que de nada adianta cair de pau naquele que já é conhecido como o “pior presidente nesta pandemia”, porque a maior parte do que vemos é apenas a espetacularização da política e nada mais. E política não é isso_, pelo menos não só isso_. Inclusive a escolha de assistir a esse show de horrores ou atentar para aquilo que acontece nos bastidores é uma escolha política.
Max Caulfield, já nas primeiras horas de jogo, fala algo sobre ser um Herói do Cotidiano e eu meio que entendo que ela quer dizer, porque não é só o primeiro ministro ou o presidente quem fazem esforços colossais pelo bem de todos: o pai que aguenta mais um dia de quarentena, a mãe que suporta as dificuldades de convívio intenso. O filho que não vai longe e que segura a barra mesmo sem saber que o faz; todos são heróis porque fazem atos de heroísmo, da mesma forma que é um escritor aquele que, com palavras ordenadas uma após a outra, escreve.